IN MEMORIAN
Nascido no Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1948, Anselmo Serrat foi fotógrafo, circense, diretor, roteirista e uma infinitude de coisas mais. Criador inveterado, sonhador inquieto, integrou o Grupo de Circo-teatro Tapete Mágico e fundou, em 1985, a Escola Picolino de Artes do Circo – que se constituiu, em sua pluralidade, como circo social, escola privada, companhia artística e pólo de formação de instrutores. O Circo Picolino é um símbolo de resistência, um campo de experimentação artística e um ciclo de sólida transformação social. Anselmo concedeu uma entrevista para o projeto “Música no Circo”, em 2016, e a partir dela, temos abaixo a narrativa dele sobre a sua vida e sobre o tema.
“Era final dos anos 60 e a situação estava brava, porque o estúdio no Rio estava detonado pela repressão. A casa da minha família foi invadida e a gente estava reunido, em Santa Teresa, decidindo o que fazer da vida. Tinha duas possibilidades e eu botei a (terceira) possibilidade de (irmos pra) Salvador. Aí, cara era um lugar, coroa era outro e eu disse que se (a moeda) caísse em pé, eu ia pra Salvador. Aí jogamos a moeda em Santa Teresa, a moeda rolou e caiu entre dois paralelepípedos (em pé). Aí eu não podia dizer não aos Orixás, né – eles decidiram isso. Essa foi minha primeira vinda para Salvador. Eu vim ainda fazendo cinema e outras coisas – mas nada a ver com o circo. O circo entra na minha vida quando eu fui pra São Paulo – e aí trago a trupe de volta pra Salvador (depois).
Eu nunca pensei em fazer circo. Eu lembro do Carequinha, no subúrbio do Rio, e eu ficava tentando imitar o Carequinha. Eu comecei na fotografia de cinema, e, fazendo isso, eu fui chamado pra ir a São Paulo, para terminar o filme do Zé Celso – o “Rei da Vela”. Eu fui pra fazer um filme e fiquei 4 anos. Eu fiz mais três filmes – além desse – e no meio disso, eu fiz a gerência do espaço Oficina. E enquanto isso, eu conheci um grupo de circo-teatro, o Grupo Abracadabra, e eu comecei a seguir o grupo e achava lindo o que eles faziam – além de ter duas meninas lindas, eles tinham um trabalho bonito. De noite a gente escrevia umas besteiras, tomando cerveja, e de dia aquilo era usado na peça. Aí, eu via que não eram besteiras quando entrava em contato com o público e dava resposta – enquanto no cinema eu esperava um ou dois anos pra ver o resultado… e tem filme que eu nunca vi o resultado. Então o circo se mostrou uma arma muito incrível, naquele momento do brasil, em 80, a volta das caminhadas de democratização. Acho que as últimas coisas que eu filmei foram as caminhadas dos anos 80, no ABC, e aí fiquei com o grupo e fui pra rua com eles. Mas meu negócio nunca foi trabalhar pros outros, então eu fui pra escola de circo e com menos de 6 meses, eu já tinha um grupo de circo e dirigia espetáculos que a gente apresentava na rua. Aquilo era uma arma muito forte. Todos os parques de São Paulo estavam fechados, acho que pra não haver concentração de gente nos parques – acho que isso vem da ditadura. Aparecia logo a polícia, achando que era comunista preparando o golpe. E aí fizemos um projeto, encaminhamos para Secretaria da Cultura e conseguimos abrir os parques. O projeto chamava “Carrossel” e o grupo “Tapete Mágico”. Nós construímos um trailer-palco e ficamos viajando por São Paulo com o trailer, e aí nunca mais… depois que provamos aquela liberdade de ir pra rua, falar o que a gente quisesse. Então tivemos publico de 2 mil, 3 mil pessoas, na Praça da Sé. Remontamos Dostoievski – coisas muito novas para aquele momento – isso com o grupo “Tapete Mágico”, que nós montamos quando eu fui pra Escola Nacional. Juntou muitas pessoas e começamos a viajar com isso. Eu tinha ido pra São Paulo pra voltar – e eu era casado aqui, tinha filho e tal – mas eu acabei me casando de novo em São Paulo, com Verônica, e tivemos uma filha. Ficou uma confusão porque tinha um casamento em cada lugar e eu escolhi, depois, juntar todo mundo em Salvador… eu trouxe o “Tapete” pra Salvador.
Logo de cara a gente sentiu a necessidade de ter música ao vivo. Na época, a gente conhecia um maestro jovem, fantástico, chamado Fred Dantas – e ele montou uma trupe que acompanhava o Tapete Mágico. Viajávamos 10 pessoas, num Galaxie que eu tinha, mais a Banda de Boca, que ia junto. Era uma experiência muito linda, porque Fred compunha para o espetáculo. A música era feita junto com o espetáculo. Eles musicavam coisas que a gente escrevia. Aí, as crianças queriam muito participar. Primeiro a gente montou uma barraca de praia em Itapuã e tinha espetáculo todo fim de semana. Nós fomos os primeiros a poluir o som das praias, com caixa de som – ninguém tinha isso, hoje tá um horror. Começou a pegar isso. Fizemos a primeira expo-praia e conhecemos muitos artistas fantásticos. As crianças queriam brincar de fazer circo. Teresa Oliveira nos apresentou quem estava à frente de onde tava o circo Troca de Segredo. Ele topou que o circo funcionasse lá, nunca cobrou um real. Diziam que a gente era louco, porque circo não funcionava na Bahia… aí a gente botou uma chamada no jornal, e, no primeiro dia, veio a jornalista e quase nenhum aluno. Aí ela já fez uma matéria sobre a Bahia já ter escola de circo. E um mês depois, a gente tinha 30 alunos. A coisa bombou e o circo começou – aí apareceu como uma alternativa de educação. Nossos alunos eram crianças hiperativas e eles eram mandados para o circo. Depois do primeiro ano – em setembro de 85 e em dez de 86 – a gente realizava o primeiro espetáculo da escola, como música ao vivo, trazendo uma bandinha de sopro bem tradicional. Com trompete, 5 músicos: 2 percussões e 3 sopros. E eles acompanhavam o espetáculo todo tocando as músicas tradicionais. Foi muito lindo e aquilo grudou. E tem gente que, desde aquela época, mantém contato com a escola Picolino, por causa disso. Já era Escola Picolino. No segundo ano, a gente quis experimentar outras coisas na música. Chamamos uma galera e trabalhamos a música para o espetáculo mesmo. Isso ganha força no Gran Circo Brasil, quando aquele flautista baiano maravilhoso, Tuzé, fez a direção musical do espetáculo – e ele montou a banda e todo mundo na banda é famoso. Foi fantástico. Eles ensaiavam, mas ainda eram músicas prontas, escolhidas por nós.
No espetáculo de 92, eu decidi que não ia ter música pronta: todas as músicas serão compostas para o espetáculos e dentro deles. Aí chamo André pra acompanhar os ensaios, pra fazer experimentos melódicos durante. Eu tive que brigar muito com os pais, pra manter a música. E quando apresentamos o espetáculo, o público chorava de emoção, porque as músicas tinham uma relação muito viva com o número. Cada movimento que tinha, eles conheciam e tinha alguém tocando para aquele movimento. Em cada número, tinha um músico cuidando do picadeiro. O resultado era uma música circular, usando o que tem de melhor no circo: as emoções. O que tem de melhor no velho e bom circo: trabalhar com as emoções – o que o circo tradicional sempre fez muito bem Mesmo trabalhando com músicas tradicionais, músicas de cinema, temas… eles usam isso como ninguém. Eles dão o corte como ninguém: a hora do trapezista, a música tá no tempo certo… ela faz um silêncio, pro público aplaudir e volta. O circense tradicional domina isso com uma facilidade muito incrível. E a banda soube trabalhar isso, a gente trazia o movimento circense com composição própria. Tem momentos que a gente não aguenta e faz uma homenagem a Gil, com espetáculos só com músicas do Gil – que é lindo e facilita pra todo mundo, porque a experimentação é muito mais exigente. A gente vai trabalhando e ampliando isso, até conseguir formar uma banda que passa a viver o circo: e essa banda se chama Banda Picolino. Junta uma galera e tem um repertório fan†ástico, só de música feita para o circo.
Quando a gente fez (o espetáculo) “Panos”, poxa, foi todo decidido num terreiro de umbanda, jogando búzios. Os músicos tiveram que mergulhar no universo do candomblé e a música toda parte disso – e entra nisso a música instrumental e circense. Nós fomos descolando cd’s e coisas… nós tínhamos o mestre, nosso pai de santo, e ele guiou o caminho desses músicos. E além disso, tinha músicos de candomblé, que faziam a percussão. E tinha gente que virava na plateia, porque não era de brincadeira, era de verdade. Tinha que tomar cuidado pra não virar no picadeiro. Viajamos pela Europa toda tomando banho (de folha)… a gente carregou os orixás e atabaques com a gente. Sempre trabalhamos o tema. Sacamos a importância da música feita para o circo. A música é tão importante, quanto o artista no picadeiro. O músico está tocando para o artista e trocando permanentemente com ele. Ele faz o batuque e aí a gente mergulha num candomblé mais específico, na linha dos caboclos.
Depois disso vem o Glauber (espetáculo “Guerreiro”, sobre Glauber (Rocha) e ele acontece magicamente. Ele invade o meu espaço e diz que quer o espetáculo. E a gente começou a trabalhar Glauber, vimos filmes todos e elaboramos o roteiro. As músicas todas da construção inicial, eu escolho, mas é Amadeu, que é o diretor musical, ele que dá o toque. Outras são letras compostas por Daltinho, que escrevia por encomenda. A música continua sendo central, ela é a narrativa. No “Guerreiro” ela está contando a história do espetáculo, complementando a cena. A letra da música vai dizendo o que está acontecendo ali. A chegada dos romeiros, deus e o diabo. Todas as músicas são cantadas pela banda maravilhosa. O espetáculo viajou o país. O elenco tinha vinte e poucas pessoas e a banda, tipo dez pessoas. A gente tinha dificuldade de apresentar, porque era muito grande.
Aí pensei em fazer uma coisa menor, mas eu queria mesmo era fazer uma coisa maior. Coloquei um músico só e música eletrônica. A música mergulha mais fundo e eu queria que fosse só André, mas ele exigiu trabalhar com Betão. E foi assim. O diálogo de música e artista é bem intenso. E ele ganha intensidade quando Bife entra no lugar de André, porque ele pega a essência do que eu queria e dialogava com os corpos com guitarra. Eu ficava em cima dele, provocando ele – tanto que ele fez a dissertação dele com a tese sobre música no circo, no “cenas cotidianas”(nome do espetáculo), onde o diálogo do corpo com a música é muito forte. São quadros, mas a música narra a situação – curte com a cara da situação, meio carioca, meio fresco. E cada quadro vai tendo uma historinha. A gente trabalhou influências de alguns compositores, a galera de Pernambuco… Mas a música se concretiza como um momento forte do circo, onde circo-música se apresenta como uma unidade, uma coisa só. Tem uma produção muito grande, intensa, e a música e o circo ensinam como tratar as emoções. O medo, a coragem, o susto, tudo isso é tratado: tem na música a hora do susto. Essa galera domina isso de uma maneira muito bonita. A gente aprende com o músico e eles com a gente. Se você der uma nota, ele vai parar… mas um salto no ar, não para. Não dá pra interromper um salto. Que é sempre um problema, quando a gente participa de peça de teatro, porque o cara faz a cena dez vezes -e no circo não dá pra repetir tanto assim, porque é de alto risco. Quando acontece o erro, a banda tem que cobrir o erro e voltar pro ponto onde quer chegar. Igual quando você está contando uma história e se embanana, você tem que terminar de levar essa história …e isso acontece muito porque, volta e meia, alguém cai do trapézio, sai do arame, aí o músico tem que cair do arame e subir novamente, junto com o arame. A gente escancara essas coisas, né, a gente nunca camufla. Foi no “Guerreiro”, que a tela subia e descia e pro carinha que fazia a mecânica no espetáculo, nós criamos um espaço cênico pra ele – e tinha música pra ele trabalhar. Essas coisas são nossa grande contribuição pro circo que está acontecendo hoje. Muita gente diz que está fazendo coisa nova e quando vou ver, é coisa velha. E tem gente que fala muito de circo, mas não entende nada. Eu vejo muito isso e fico abismado. Vou pra uma mesa, lá no sul, falar sobre isso.
Eu não tive muita vivência com o circo na infância. E não tinha nenhum circo no meu bairro. Lembro de ter visto Fred e Carequinha no clube – e depois eu tentava imitar. Não sei de onde, eu brincando de circo em casa… mas eu preferia futebol. Mas uma vez inventaram que eu era trapezista, eu pendurei num cano e caí de cabeça no chão. Nos anos 90, no aeroclube, fizeram um programa especial comigo: ‘gente que faz’. E queriam que eu dissesse que eu sempre sonhei em ser de circo… mas eu não sonhei com isso. Isso entrou na minha vida. E hoje eu sei que é uma arma muito poderosa – e (entrei) porque tinha as mulheres lindas e eu casei com uma delas, a Verônica. Em Itatiaia, eu assisti alguns circos que tinha teatro no circo. Aí foi um contato meio estranho… O circo era muito escuro, luz de velas, não era uma grande coisa. Eles já eram muito pobres.
Na época áurea do rádio, o grande espaço dos cantores era o circo. Angela Maria, Cauby Peixoto.. muitos deles cantaram em circo. Eu nunca tive a sorte de vê-los no circo. Só os vi em outros lugares, tipo o clube da minha cidade. Os clubes eram os lugares de apresentações – que era um bairro pequeno, no meio de outros dois. Hoje não deve ter mais clube social. Eram espaços de apresentações até do circense. O circense continua se apresentando em todo espaço alternativo… eu falo que é o único artista que não fica desempregado – só se for vagabundo mesmo. Ele está presente em tudo quanto é festa. Hoje o circo está de uma outra forma inserido na sociedade… está nas escolas. Não tinha escola de circo. E agora, só em Salvador, tem muitas escolas que usam o circo como ferramenta de educação. Por isso eu digo que o circo é uma ferramenta mais poderosa do que eu imaginava. Só de circo social tem muitos. .
(Sobre a Picolino) Aqui, hoje, com 30 anos de vida. O povo dizia que não ia durar nada e nós chegamos aqui – e a gente continua funcionando. Hoje a céu aberto e amanhã na lona. Nós somos circenses e estamos sempre correndo o risco de parar. Eu mesmo quero dar outro rumo pra minha história. Venho há dois anos experimentando outras formas de gestão, mas ainda não consegui isso. Eu hoje tenho minha vida toda dirigida pra Jiquiriça e digo que andei 65 anos pra ter casa… e é o lugar que eu escolhi e eu não quero sair de lá. Não tem violência, assalto… tem um doido ou outro. É muito pequena e tranquila. Estou desenvolvendo um trabalho de circo rural, estou descobrindo o que é isso. Não sei se eu vou conseguir, mas é uma coisa que estou fazendo pra chegar neste ponto. Se a Picolino vai acabar ou não, nao sei. Um dia vai acabar, porque não existe nada que seja eterno. Mas a história dela vai ser eterna. Os governantes não sabem o que fazer com a gente. A gente ganhou o usucapião. O direito de uso é nosso, temos o papel na mão. Já fui chamado pra negociar com eles. Aqui, nessa área, são 20 anos e daqui já saiu gente pro mundo todo. Já saiu gente da rua e que hoje dirige projetos sociais. A gente cumpriu um papel incrível, tanto da perspectiva do circo, como ferramenta social e quanto à transformação do circo como uma arte maior. Somos reconhecidos como um circo que fala brasileiro, somos tupis. Assumimos essa mistura e é dela que interessa falar com o povo. Eu prefiro fazer algo ruim nosso, do que algo copiado. No último espetáculo que nós fizemos, em Jiquiriçá, o espetáculo abre com uma música guarani. E quando toca, as meninas pedem pra tocar de novo. “