DONA ZEZA​

Pernambucana de nascença, mas na Bahia há mais 40 anos, Dona Zeza  foi proprietária do Circo Águia de Prata e do Circo Marco Polo. Foi rumbeira e fez dupla de palhaço, com o Confusolino e o Coquinho – com esse último, a dupla chamava-se “Coquinho e Cocada”. Conheça a história dessa mestra circense, através da sua própria narrativa, extraída da transcrição editada da sua entrevista, feita em 2015, no alto dos seus 77 anos.

“Eu nasci em Pernambuco,  em Palmares. Eu nasci lá e trabalhei numa sapataria. Um dia saí  da loja e quando fui pra casa, vi que  chegou um circo na cidade. Um artista do circo virou vizinho de mim, num hotel em que eles se hospedavam. O circo se chamava Águia de Prata. Fui pro circo na estreia, gostei do circo e peguei a namorar com ele. Antes do circo sair da cidade, ele me pediu em casamento pra minha mãe. Eu não tinha pai e minha mãe não queria deixar que eu casasse com ele, porque ele era do circo. O pessoal falou pra ela deixar,  porque senão ele ia me carregar e fugir, que era mais feio. Passei um mês noiva dele. Minha mãe falou pra ele que pra casar ligeiro,  ela não conseguia me aprontar assim rápido, porque eu não tinha pai e ela era pobre, lavava roupa. Eu não gosto nem de lembrar.  Aí ela me deu em casamento e eu me casei em Palmares, 10h da manhã e a gente viajou pro Rio Lago em seguida, onde o circo estava. Quando chegamos eu fui dormir na barraca – a nova morada – mas aí choveu a noite todinha, me molhou toda e eu disse que queria ir embora. Não podia mais:  tinha que ficar no circo, cumprindo minha sorte. Trabalhamos 10 anos com o proprietário do circo, irmão dele. Aí eu disse: 

-Mas nós vai viver a vida toda trabalhando pro seu irmão? Vamos fazer um circo pra nós! 

-Mas como? Sem dinheiro.

-Vamos arrumar dinheiro, comprar os paus, os panos. 

Não era lona, não.  Era pano de fazer lençol. Nós pegou a trabalhar , compramos as coisas e fizemos o circo. Aí virei proprietária de circo. O cunhado mudou o nome de Circo de Águia de Prata para Londres Circo, um circo grande. E o nosso circo era o Águia de Prata – o nome  passou pra nós. Era o nome da dupla de trapézio deles – os Águias de Prata – mas no Rio Grande do Norte, meu cunhado caiu e ficou aleijadinho da perna: caiu do trapézio e não levou mais  trapézio. Mas muita gente de circo sabe que eles são os águias de prata.  Em 1965, fiz esse circo com meu marido. Fizemos nosso circo só com os pauzinhos e botamos o pano arrodeando: chamava tomara que não chova. O povo passava e a propaganda do palhaço, com perna de pau e megafone na boca:

  • Atenção, senhoras e senhores! Vai ser um espetáculo muito bom! Mas tomara que não chova, porque se chover, não tem espetáculo.

A gente estava tão alegre, que pra mim, eu era a dona do Circo Garcia, de tão satisfeita. A gente estreou o circo em Pernambuco, aí um vizinho arrumou um quarto pra eu morar. Fizemos a primeira noite e fomos pra casa dormir. No outro dia, roubaram o dinheiro do espetáculo e não tinha dinheiro para comer. Ninguém sabia cadê o dinheiro… não tinha o dinheiro do pão, o dinheiro foi roubado ou perdido. Mas continuamos. Andei o nordeste quase todo. Depois viemos para a Bahia e eu estou aqui há 40 anos…. porque meu neto tem 38 anos e ele nasceu em Itabuna (BA). Meus netos são todos baianos. A gente continuou com Águias de Prata, mas adiante meu marido vendeu o circo pra uma pessoa conhecida aqui da Bahia e nós ficamos na casa de minha mãe. Mas logo a gente voltou pro circo do meu cunhado. Meu marido só sabia trabalhar em circo e eu também. Só que aí, meu marido fez outro circo, e, dessa vez, ele me deixou um tempo… e eu fiquei na casa de minha mãe. Eu vim fazer o Circo Marco Polo com meu filho… eu disse:

 – Meu filho, seu pai arrumou outra mulher. Eu trabalhei tanto e ele foi embora com outra pessoa… e agora?

 

Aí arranjei um bocado de mulher da minha idade, fui num cinema e arrumei show no cinema. Aluguei o cinema para fazer espetáculo de circo. O cara topou fazer sexta, sábado e domingo depois do filme, e isso me deu uma ajuda. Foi em Palmares. Ali a gente começou o Marco Polo. Era um tabuazinha assim pra pôr o nome do circo e eu queria que botasse o nome de meu filho, Marquinhos. Mas aí tinha outro dono de circo, o Mandrak, e ele sugeriu Marco Polo: 

-Pra combinar com a vida de vocês, que vocês viajam muito. 

Quando a gente chegava com o circo na cidade, as professoras vinham ouvir as histórias de Marco Polo. Meu marido ficou com um circão com essa mulher, mas não deu sorte.  Ele veio pra dentro do meu circo com a mulher e com tudo. Ficaram ali com filho, mulher e tudo. Cheguei em Arapiraca e meu filho completou aniversário. E o pai dele vinha almoçar junto, porque era aniversário do nosso filho… mas ele  mandou dizer que não vinha não, porque a mulher dele era ela. E eu disse:  

-Mas essa mulher está mexendo comigo.  

Ele não veio não, ficou lá com ela.  Chegava na cidade. ele botava ela no hotel e eu ficava no circo trabalhando. Um dia eu tomei uma cerveja, entrei na casa dele e quebrei tudo. Toquei fogo. Aí a gente se separou de vez e já tem mais de 10 anos que ele morreu. Ela ainda é viva. Ele saiu do circo, foi viver em Caruaru e virou secretário de circo – aquele que vai na prefeitura, ajeita a praça. Eu continuei até hoje com o circo. A gente fez o Circo Marco Polo em Pernambuco, Ceará quase todo, Fortaleza… Quando eu  fiz o Marco Polo, com meu filho, eu já estava com 40 anos. Hoje estou com 77. Eu penso que fui uma das primeiras proprietárias de circo.

Vendemos o circo, eu e meu filho, e  viemos morar aqui em em Feira de Santana… depois vendemos tudo e fomos pro circo de novo.  Agora a gente voltou a parar, por motivo de doença minha, e o circo está com o meu neto –  que toca do jeito dele.

No meu tempo, o circo chegava e o povo corria pra ver o circo. Hoje em dia não é assim. Antes era como se a gente fosse artista de televisão. Era proibido as mulher sair pra fazer feira, pra ninguém ver as artistas do circo – só via de noite nos espetáculos. E hoje em dia o circo segue, mas sem minha presença, nem a presença do meu filho. Eu resolvi sair do circo, mas até hoje eu tenho saudade.

Casei nova, com 14 anos, que estrago de vida… Mas também a situação era tão ruim. Minha mãe lavava roupa e chegava em casa sem ter o que comer. Quando eu chegava do circo,  ela não tinha dinheiro pra comprar nada. Hoje em dia a pobreza é menos. “Quando eu cheguei no circo, tinha tanto pão pra comer… eu peguei um lápis e escrevi uma carta pra minha mãe, dizendo:  ”mamãe, aqui é tão bom, tem tanto pão e tanta carne”. Eu não tinha direito de comer carne. Hahaha. Minha mãe casou com um homem que trabalhava na usina e jogava baralho, mas quando ele ganhava dinheiro ia pro jogo e perdia o dinheiro todo e ficava todo mundo sem nada. Por isso me casei assim. Minha mãe lamentava que eu casei com o povo do meio do mundo, que não para nunca num canto. Mas, mãe, eu me casei por esse motivo… 

Antes de engordar, eu trabalhava no picadeiro. Aí depois dei a engordar… eu tinha um vestido de pelúcia e aí o povo falava “sai daí, baleia”. AÍ eu disse: Quer saber de uma coisa? Vou deixar de trabalhar em circo, porque estou ficando velha. “Coroa bonita, sai daí, tá muito gorda” e eu com o salto alto. Graças a deus eu gosto muito de circo.

A televisão acabou com o circo… quase morremos de fome no Ceará,  porque o prefeito colocou a televisão na rua. A gente foi pra praça, mas o povo via novela e quando terminavam, já tinha terminado o espetáculo. O circo ficava em ninguém. Nem sei quando foi aquilo… ninguém podia comprar uma televisão. O cinema não acabou, né? Mas acabou vários circos.